quarta-feira, 25 de março de 2015

104 - esquece

Era um pacto silencioso, tratado com ele mesmo. Só ficaria com outra se fosse mais feia do que ela. Mais gorda, mais nariguda, a pele marcada pela acne... Não poderia haver dúvidas, não havia espaço pro "será?". Ou era mais feia e estava apta, ou não existiria a possibilidade do envolvimento carnal. As peles não deveriam se tocar. Sequer haveria a possibilidade do envolvimento, qualquer envolvimento. O mero envolvimento como ponto final. Não haveria o porquê do envolvimento como uma fêmea, se o ponto final não fosse a conjunção carnal.

Esse tipo de envolvimento era, para ele, meramente fisiológico, como urinar ou suar. Era como se fosse algo virtual, mas real. Solitário, mas na companhia de alguém.

Não passava pela cabeça dele sacanear a mulher que amava, a futura mãe de seus filhos. Se ele não fosse fiel a ela, a quem seria?

Mas houve o dia, aconteceu. Ele sentiu pena. Tão acostumado a sentir tesão nessas ocasiões - ou vontade de sumir, dependendo do momento -, ele sentiu pena. Não era apego, não era carinho, não era vontade, não era "quero mais". Era a mais pura e triste pena. Mas, sem dúvida, era um sentimento que não deveria estar ali.

Quase que automaticamente, pensou que talvez nem fosse mais feia do que ela.

Isso o deixou mal. Era hora de reassumir o controle da situação. Vestiu a roupa, escovou bem os dentes - o seu ritual de purificação - e foi indo embora, deixando o dinheiro do táxi sobre a caixa de um monstruoso vibrador e a espera dos impropérios libertadores. Era quando xingado que se sentia bem. O grito de canalha escancarava que ele era homem de uma mulher só, apenas ela era digna de seu amor e de sua retidão moral.

Mas dessa vez não houve nada. Nem uma sílaba. Sequer gemido, vogal ou onomatopeia. Apenas o silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. E com o silêncio ele não podia.

Olhou-a de novo. O queixo entre os joelhos. Fez a imagem de uma palestina em Gaza. Nua, a pele branca e os olhos azuis. Os seios naturais, firmes e rosados, tiravam o foco da barriguinha firme e saliente, que bem combinavam com suas bochechinhas rosadas e quentes.

Olhou-a de novo.

O pacto fora rompido, e ele não percebeu.

Caiu na besteira de perguntar, e foi o que traçou o destino dos dois, pelo resto das suas vidas.

- O que foi?

- Nada, esquece.

Um homem nunca esquece.

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