quarta-feira, 10 de outubro de 2012

63 - Não foi dessa vez


- Tá, mas eu só queria saber o porquê. Por quê?

- Porque não. Pronto. Porque não.

- Mas e desde quando isso é resposta? Depois de um ano de idade esse tipo de resposta não vale mais.

- Ah, pera aí, com um ano de idade a criança nem fala ainda.

- Sei lá, depois dos três anos.

- Com três anos nem se usa da argum...

- Não, para com isso. A gente não tá conversando sobre isso. O assunto é outro, não tenta desvirtuar.

- Bom, mas por mim a gente pode mudar de assunto, pois esse está decidido. É não e pronto. Ponto.

- Mas pra ti é um problema a gente falar sobre isso? Sinceramente eu acho que se é um problema pra ti falares sobre isso é porque tem um problema muito maior por trás.

- Não, não é problema nenhum pra eu falar sobre isso, mas a resposta não vai mudar; e se a resposta não vai mudar, não tem o que conversar.

- Mas aí é que tá, a gente não tá discutindo pra resposta mudar, eu só estou querendo entender o motivo pelo qual a resposta não vai mudar. Tem que ter um motivo. Senão eu vou achar que é um capricho teu só pra me sacanear.

- Não tem nada de capricho, é só uma questão de... Uma questão de...

- Aí! Tá vendo? Já tá gaguejando. Não gagueja, quero ver. Responde, sem gaguejar.

- Não estou gaguejando.

- A gente namora há cinco anos. Eu sempre respeitei, mas agora a gente chegou num momento quê...

- Que o quê?

- A gente não está namorando só de sacanagem. Provavelmente a gente vai morar junto, viver junto, ficar juntos por...

- Casar?  A gente vai casar?

- É. Pode ser, isso aí. E se a gente vai, esse tipo de situação tem que ser resolvido. E a gente resolve assim, conversando.

- A gente vai o quê?

- Isso. Isso que você falou.

- Mas fala você.

- Ahh, para. Isso aí.

- Tu tem dificuldade é? Fala. Se tu não falar com todas as letras não tem nem mais assunto.

- Casar. Tá bom assim? A gente vai casar, e, se casados formos, a gente tem que ter essa situação muito bem resolvida.

- Mas já está resolvida. Na verdade, a gente já falou muito sobre isso. Tu sempre vens com esse papo furado.

- Não, a gente não fala. Eu peço e você diz que não. Resume-se a isso.

- Dói. É porque dói.

- Tá bom. Dói. Mas que eu saiba você nunca deu.

- Nunca dei.

- Então tem que experimentar pra saber se dói ou não.

- Eu não disse que nunca experimentei, eu disse que nunca dei.

- Ah não. Como assim? Já experimentou, mas nunca deu? Isso não existe. Tu deu pra quem?

 - Não, nunca dei.

- E que papo é esse de “já experimentou”? Porque, tecnicamente, se um pau já entrou ali, você já deu.

- Entrou, mas foi sem querer. E se foi sem querer não fui eu quem dei. E se queres saber, doeu e doeu 
muito.

- Mas como que entrou? Estavas dormindo?

- Ah é, estava, estava dormindo. Lógico que não. Entrou sem querer.

- Então tá aí. Explicado o motivo do teu trauma. Entrou sem tu estares com vontade, sem estar pronta. Sem estar preparada. Sem estar relaxada. É isso. Na verdade pode-se dizer que você foi arrombada.

- O que é isso? Então tu queres comer o meu cu e vem dizer que eu sou arrombada?

- Fala baixo.

- Fala baixo não. Sério, era só o que me faltava, eu venho contigo em um puta restaurante chique, a gente tomando um vinho e, além de só querer falar de cu, tu ainda me chama de arrombada.

- Amor, não viaja. Tu sabes que eu te amo. Eu jamais falaria isso. O que eu estou querendo dizer é que o que aconteceu, é como se fosse o arrombamento de uma porta. Sabe, se eu quiser entrar em uma porta fechada eu tenho que colocar a chave na fechadura, girar com calma, colocar a mão na maçaneta, abrir a porta e, só então, entrar. Se eu chego simplesmente passando por cima da porta, com tudo, a porta vai cair, estourar, arrombar. Tu consegues observar como comer um cu, e entrar em uma porta podem ser situações semelhantes? E digo mais, tem também o lance do...

- Não. Tu não vai me convencer.

- Quando tu fazes cocô, dói?

- Lógico que não.

- E eu duvido que tu nunca tenha feito um cocô mais grosso que o meu pau.

- Ahhh, não. Eu não acredito!!!

- É sério, é só pra ilustrar que o cu, diametralmente falando, fisiologicamente falando, também está preparado. É só fazer com calma. Tu não vês tanta atriz pornô ganhando a vida dando o cu? Tem que parar com esse lance de achar que o cu é algo pejorativo. Tem filme que a atriz da o cu pra dois caras ao mesmo tempo.

- Ao mesmo tempo?

- É, ao mesmo tempo.

- Montagem.

- Que montagem? Tá de sacanagem? Como que o cara vai fazer montagem de dois paus entrando em um cu?

- Como não? Os caras explodem o mundo inteiro no cinema, cortam a cabeça, viajam pra marte e não vão conseguir efeitos especiais para enfiar dois paus em um cu? Isso é ridículo de fácil.

- Não viaja, filme pornô tem orçamento muito baixo e... Espera aí, não vamos sair do foco. Foda-se se é efeito o não. Fodam-se as atrizes pornô, foda-se o Spielberg. O papo aqui é o seu cu e o meu pau. O seu cu no meu pau. Isso não pode ser tabu. Tem que estar no dia a dia do casal, tem que...

- Mas nem que a vaca tussa que tu vai comer o meu cu todo dia. Mas nem sonha com uma coisa dessas.

- Eu não disse que quero comer o teu cu todo dia. A única coisa que eu quero é fazer uma vez. Uma vezinha só. Depois de fazer uma vez, tu diz se gosta ou não e daí a gente segue essa conversa.

- Não.

- No meu aniversário?

- Não.

- Lua de mel?

- Ah, mas quem disse que não ia querer lua de mel?

- Então tá combinado. A gente faz uma lua de mel e lá tu dá pra mim.

- ...

- Combinado.

- ...

- Sério. Combinado.

- Mas por que tu queres fazer uma coisa que eu não quero.

- Não queres?!?!?! Mas e quando eu coloco a língua tu não gosta?

- Tá, mas agora tu queres comparar  o teu pau com a tua língua?

-Não, eu não estou comparando. Mas é para entenderes que se tu gosta de uma linguada ali é porque tu vai gostar mais ainda quando for o pau. Tem terminações nervosas. É que nem na bucet...

- Ai não, buceta não.

- Eu ia falar bucetinha.

- Fala baixo.

- Bucetinha pode?

- Não.

- Tá, é que nem na perereca. Tu gosta quando eu coloco a língua, mas o bom mesmo é quando o pau entra.

- Ai, que vulgar.

- Ah, espera aí. Eu estou falando um assunto muito sério com a minha namorada. Não queres que eu fale igual professor primário. Pênis, vagina, orifício, cavidade...

- Mas então fala baixo.

- Imagina, se Deus é tão perfeito, por que tu achas que ele ia fazer o cu milimétricamente do tamanho ideal para receber um pau? Porque Deus não ia imaginar, que tão pertinho um do outro o cara não ia ter a ideia. Se o cu não fosse pra comer, Deus faria, sei lá, o cu muito grande. Ou muito pequeno. Ou bem longe da buceta, sei lá.

- Ué, tu não é um ateu tão convicto.

- Tá, esquece Deus. Sendo a evolução, tão perfeita... Deve ser isso. Ao longo da evolução da humanidade só restaram aquelas mulheres que tinham o cu mais ou menos do diâmetro do pau dos homens. Só os casais que conjugavam dos prazeres do sexo anal que foram considerados aptos para evoluir.


- Quanta besteira.

- Tá bom. Mas então, na lua de mel?

- Agora tu só quer lua de mel pra ficar comendo o meu cu.

- Primeiro, eu não quero “ficar comendo o teu cu”. Quero comer uma vez, depois o papo é outro.

- Não.

- O Sérgio, sabe o Sérgio? A namorada dele disse que ia dar na lua de mel, e no primeiro aniversário de namoro ela deu.

- Come o cu dela então.

- ...

- Olha, o Sergio é o Sérgio, tu és tu, e o cu da namorada do Sérgio é o cu da namorada do Sérgio.

- Não. Sério, é um absurdo. Tu sendo minha esposa, e eu com a frustração sexual de nunca ter comido um cu. Aposto que isso não é saudável. Olha Freud, pode ver lá. Homem com frustração de não ter comido um cu só pode dar merda.

- Acho que tu que tens que procurar Freud. Essa tua fixação não é normal.

- É serio, imagina eu andando de mão dada contigo na rua e o cara apontando: olha lá aquela garota, eu já comi o cu. E o babacão do namorado aqui batendo punheta pensando no teu cu.

- Ninguém vai dizer isso porque eu nunca dei.

- Ah tá. E o cara que meteu sem querer? Homem não tem dessa não. O pau entrou no cu, mesmo sem querer já é um cuzinho na conta.

- É isso que tu queres né? Colocar um cuzinho na conta.

- Não. Eu não quero colocar mais um cuzinho na conta, eu quero colocar um cuzinho na conta...

- Ui, que nojo. Duvido que tu nunca tenha feito.

- Não fiz. Nunca fiz. E se você não colaborar eu nunca vou fazer e vou ser frustrado pro resto da vida. Capaz de dar uma depressão bem grande e daí, nem se tu quiseres dar, eu vou conseguir.

- Ahh, que bom. Porque eu nunca, nunca, nunca vou querer dar. Logo, tu não precisas te preocupar com isso.

- Tu não entendes. Eu só quero ter o prazer de desfrutar esse momento contigo. É como se fosse a minha virgindade, sabe? Um momento bonito, só nosso. E tenho certeza que tu vai ter prazer também.

- Como tu sabes que eu vou ter prazer, tu já deu o teu?

- Tá maluca? Não tu só podes estar de sacanagem comigo. Eu não sei se você percebeu, mas eu estou 
falando sério contigo.

- Então tá, então eu vou te dizer o que eu acho. Se é pra falar sério, vamos falar sério. Acho que essa fixação por cu é vontade tua de dar o teu. Tu não estava falando em Freud? Então...

- ...

- Que foi? Não era pra falar sério.

- Olha, eu acho uma infantilidade tua isso que você tá fazendo. Eu sou viado então porque quero comer o teu cu?

- Não é por isso, é a fixação.

- AHHHH TÁ! Eu sempre quis comer o teu cu. A primeira vez que a gente transou eu quis, a segunda vez que a gente transou eu quis. TODAS as vezes que a gente transou, eu quis. Eu bato punheta esmagando o meu pau, com a mão bem fechadinha, imaginando que to comendo teu cu. Faz cinco anos que eu quero isso. E agora tu vens me dizer que eu to querendo dar a bunda? Isso só pode ser sacanagem.

- Esmagando a mão?

- É.

- Como assim?

- Eu quando seguro o pau, aperto bem. Deixo a mão bem apertada.

- ...

- Pra simular o cu, bem apertadinho.

- É por isso?

- Isso o quê?

- Tu achas que eu não sou apertadinha?

- Lógico que não. Não é isso amor. Eu adoro a tua buce...

- Buceta não!

- ... a tua pererequinha. Eu adoro ela, eu me delicio nela. Acho ela uma delícia, cheirosa, gostosa, molhada. Eu amo ela, toda vez que vejo da vontade de cheirar, lamber, tocar, esfregar o p...

- Ai... Para que eu vou ficar com vontade.

- Mas eu também tenho vontade de lamber, tocar, cheirar o teu cu.

- Ahh, já broxei. Lamber cu, cheirar cu? Isso não é nada excitante. Sei lá, cu me lembra cocô. Remete a sujeira.

- Bom, só se tu não limpa direito o teu. Daí realmente eu não posso fazer nada.

- Nem vem, eu limpo muito bem. Se eu não limpasse tu não ia adorar lamber.

- E se dar o cu não fosse bom, tu não ia adorar que eu lambesse.

-COF! COF!
Era o garçom, dando uma tossida constrangida. Quando o casal percebeu, só restavam eles no restaurante.

- É que a cozinha está fechando, vocês querem fazer mais algum pedido?

- Não, não. Obrigado. Pode trazer a conta.

- Pois não.

O garçom afastou-se, e o casal olhou-se. Sorriram. Não falaram nada, mas pensaram juntos. Será que estavam os garçons estavam escutando a conversa?

Pagaram a conta e foram embora. Ele na certeza de que, se ouviram o papo, os garçons torciam por ele. Ela na certeza de que não iria dar o cu. Não aquela noite.




62 - Era sacanagem

A conta acusava.

Três mil quinhentos e setenta e seis reais e vinte e nove centavos.

Três camisetas, uma calça e duas outras peças que aqueles que não acompanham a moda não se arriscariam a nomear.

- Crédito ou débito?

- Crédito!

[...]

- Milhas.

- Hãn?

- Milhas.

Por um momento ele pensou que a vendedora pudesse achar que ele não tinha saldo suficiente para quitar a compra. Por isso teria escolhido a opção crédito. Assim poderia fazer o pagamento mínimo do cartão, e saldar a fatura em suaves prestações mensais.

A ideia de que essa hipótese passasse pela cabeça da antipática vendedora o afligiu, o envergonhou profundamente.

Isso motivou a justificativa:

- Milhas.

A vendedora, indiferente, seguiu o processo mecânico. Apertou o três, o zero, o sete, o seis, o dois, o nove. Ofereceu a maquininha de maneira robótica.

- Senha.

Ele digitou a senha. Os dois primeiros números do aniversário de uma ex-namorada, o mês em que nasceu, e o ano do título brasileiro do seu clube do coração. Dois, seis, um, zero, nove, cinco.

Aprovado.

Ao sair da loja, era pra ele estar feliz. Havia feito compras e essa felicidade deveria durar ao menos até sair do estacionamento do shopping. Mas isso não aconteceu. Era difícil descrever qual era o sentimento, mas era fácil perceber que não era felicidade.

Com certeza a garota que o convenceu a comprar aquele pedaço de pano ridículo - e caríssimo - agora estava reunida com todos os colegas da loja falando sobre o babaca que, antes da metade do mês, era obrigado a comprar a crédito. Era vergonha, mas não era só vergonha. Era mais que vergonha, ou, então, era uma vergonha maximizada. Uma vergonha que atava a garganta. O mundo, outrora macro, havia se tornado micro.

Chegou em casa e sequer cumprimentou o porteiro. A sacola de compras ficou a repousar no banco do carona.Subiu as escadas decidido, abriu a porta do apartamento e se dirigiu à janela. A vergonha intensa só não o fez vomitar porque havia um nó que fechava a garganta. Mergulhou. O mergulho decidido dos suicidas. Sequer olhou pra baixo, apenas mergulhou. O corpo girou duas vezes em torno do próprio eixo antes do impacto.

Foi um prato cheio para o noticiário. A imprensa do país inteiro repercutiu o caso. Em menos de 24h uma jornalista de um canal asiático e um repórter de um tabloide inglês desembarcavam no país.

O corpo não havia se espatifado no chão. Antes do cimento, atingiu em cheio uma senhora que passeava com seu casal de netinhos recém-nascidos. Gêmeos.

O saldo?

Três mortes, dois braços quebrados, uma clavícula partida, uma fratura femural exposta, 9 dentes caídos no esgoto.

E uma fatura de três mil quinhentos e setenta e seis reais e vinte e nove centavos para quitar.




61

Como diria o poeta: A arte existe porque a vida não basta.

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TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

60 - In. Perfeita

A imagem da televisão era tão perfeita que até assustava.
Toda tecnologia presente. Fina como folha de papel, três dimensões, LED, light. Muitas polegadas.

Era só apertar ON. Perfeita.

A imagem era só ação. O herói - ou vilão - decapitava corpos com sua espada. Seus golpes eram rápidos, velozes. Um, dois, três. E cabeças rolavam pelo chão. Quatro, cinco, seis. Pernas e braços desprendiam-se dos troncos. A explosão foi tão poderosa que a temperatura do local esquentou, a vitrine embaçou.

Imagem perfeita a do aparelho. O horror que se passava na tela era, de fato, horroroso.

Foi impossível não pensar.

Se a tecnologia fosse capaz de tornar a emoção tão emocionante quanto o horror era horroroso, ponto positivo. IN. Perfeita.