quarta-feira, 10 de outubro de 2012

62 - Era sacanagem

A conta acusava.

Três mil quinhentos e setenta e seis reais e vinte e nove centavos.

Três camisetas, uma calça e duas outras peças que aqueles que não acompanham a moda não se arriscariam a nomear.

- Crédito ou débito?

- Crédito!

[...]

- Milhas.

- Hãn?

- Milhas.

Por um momento ele pensou que a vendedora pudesse achar que ele não tinha saldo suficiente para quitar a compra. Por isso teria escolhido a opção crédito. Assim poderia fazer o pagamento mínimo do cartão, e saldar a fatura em suaves prestações mensais.

A ideia de que essa hipótese passasse pela cabeça da antipática vendedora o afligiu, o envergonhou profundamente.

Isso motivou a justificativa:

- Milhas.

A vendedora, indiferente, seguiu o processo mecânico. Apertou o três, o zero, o sete, o seis, o dois, o nove. Ofereceu a maquininha de maneira robótica.

- Senha.

Ele digitou a senha. Os dois primeiros números do aniversário de uma ex-namorada, o mês em que nasceu, e o ano do título brasileiro do seu clube do coração. Dois, seis, um, zero, nove, cinco.

Aprovado.

Ao sair da loja, era pra ele estar feliz. Havia feito compras e essa felicidade deveria durar ao menos até sair do estacionamento do shopping. Mas isso não aconteceu. Era difícil descrever qual era o sentimento, mas era fácil perceber que não era felicidade.

Com certeza a garota que o convenceu a comprar aquele pedaço de pano ridículo - e caríssimo - agora estava reunida com todos os colegas da loja falando sobre o babaca que, antes da metade do mês, era obrigado a comprar a crédito. Era vergonha, mas não era só vergonha. Era mais que vergonha, ou, então, era uma vergonha maximizada. Uma vergonha que atava a garganta. O mundo, outrora macro, havia se tornado micro.

Chegou em casa e sequer cumprimentou o porteiro. A sacola de compras ficou a repousar no banco do carona.Subiu as escadas decidido, abriu a porta do apartamento e se dirigiu à janela. A vergonha intensa só não o fez vomitar porque havia um nó que fechava a garganta. Mergulhou. O mergulho decidido dos suicidas. Sequer olhou pra baixo, apenas mergulhou. O corpo girou duas vezes em torno do próprio eixo antes do impacto.

Foi um prato cheio para o noticiário. A imprensa do país inteiro repercutiu o caso. Em menos de 24h uma jornalista de um canal asiático e um repórter de um tabloide inglês desembarcavam no país.

O corpo não havia se espatifado no chão. Antes do cimento, atingiu em cheio uma senhora que passeava com seu casal de netinhos recém-nascidos. Gêmeos.

O saldo?

Três mortes, dois braços quebrados, uma clavícula partida, uma fratura femural exposta, 9 dentes caídos no esgoto.

E uma fatura de três mil quinhentos e setenta e seis reais e vinte e nove centavos para quitar.




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